O que é agroecologia?
Talvez a primeira imagem que passe pela cabeça de muita gente quando ouve o termo ‘agroecologia’ seja a de alimentos orgânicos, isto é, produzidos sem o uso de agrotóxicos, adubos químicos ou mudanças genéticas, para evitar danos à saúde de quem os consome e à natureza. O que nem todo mundo sabe é que os princípios da agroecologia vão muito além disso.
“A agroecologia não é um modo de produção nem um conjunto de técnicas de produção: ela é uma ciência – uma ciência engajada com o estudo do impacto ambiental e social das práticas agropecuárias”, afirma Roberto Selig, agrônomo e um dos mais antigos produtores da Associação Agroecológica de Teresópolis (AAT).
De acordo com o também agrônomo Francisco Caporal, professor da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE) e ex-presidente da Associação Brasileira de Agroecologia (ABA), essa ciência busca oferecer princípios, conceitos e metodologias para fazer a transição dos atuais modelos de agricultura para modelos mais sustentáveis, não apenas da dimensão ecológica e na econômica, mas também nas dimensões sociais, culturais e políticas.
O conceito de agroecologia é relativamente novo; de acordo com Denis Monteiro, secretário-executivo da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), ele começou a ser mais utilizado e debatido entre as décadas de 1970 e 1980. No entanto, embora a palavra seja recente, as práticas que acabam resultando do emprego da agroecologia são bem antigas: “A agroecologia se relaciona a esses conhecimentos e práticas antigos. Afinal, durante a maior parte da história da agricultura, por milhares de anos, a produção era feita sem insumos sintéticos e respeitando os ciclos da natureza”, afirma Denis.
Ele conta que, no século passado – especialmente após as guerras mundiais –, a agricultura começou a ser artificializar de forma cada vez mais rápida e intensa. “Máquinas desenvolvidas nos esforços das guerras foram adaptadas para a agricultura; venenos usados como armas químicas foram ajustados para combater pragas e doenças das plantas. As sementes passaram a ser desenvolvidas por empresas e hoje se usam sementes híbridas*, transgênicas. A fertilização dos solos também passou a depender de insumos químicos. Com isso, parte do controle do processo passou dos agricultores para algumas empresas. A introdução desse ‘pacote tecnológico’ caracteriza o que chamamos de ‘revolução verde’, que se intensificou no Brasil a partir da segunda metade do século passado”, explica, completando: “Além da degradação ambiental, esse modelo gerou também um processo de expulsão das populações do meio rural. Conforme ele foi se aprofundando em diversos países, os impactos foram sentidos e começaram a ser pensadas alternativas”.
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No artigo Agroecologia: alguns conceitos e princípios, Francisco Caporal e José Antonio Costabeber explicam que a agricultura sustentável atende a oito critérios:
Nesse sentido, não é difícil avaliar que os princípios da agroecologia estão na contramão do modelo produtivo do agronegócio. “Os sistemas são tão mais sustentáveis quanto mais biodiversos. Os monocultivos**, largamente utilizados inclusive na produção brasileira, são, por definição, insustentáveis. Além disso, do ponto de vista social, a agroecologia também se propôs a assegurar o acesso à terra – e, aqui, temos uma das maiores concentrações de posse de terra do mundo”, lembra Caporal.
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Colheita de amendoim por agricultores da AAT |
Por isso, de acordo com Denis, o conceito de agroecologia foi incorporado por movimentos sociais na luta por direitos: “O modelo do agronegócio artificializa a natureza, degrada o ambiente, explora o trabalhador e não está preocupado com a produção de alimentos e bens para servir à sociedade, mas com a geração de lucro. A agroecologia questiona esse modelo de desenvolvimento e aponta propostas para a construção de outro. Assim, ela propõe a agricultura familiar como aquela que é capaz de responder aos desafios da sociedade hoje: a crise ecológica, a crise social de esvaziamento do campo, de desvalorização dos pequenos produtores”, enfatiza.
A agroecologia se opõe ao modelo do agronegócio. Mas será que isso significa que esse negócio não pode se tornar mais ‘verde’, com práticas menos destrutivas ao meio ambiente e à saúde?
Na verdade, ele pode, e isso já está acontecendo: existe um nicho de mercado voltado para a produção de alimentos orgânicos nos moldes do agronegócio – em grandes propriedades, com exploração do trabalho, com monocultivo e tendo o lucro como principal motivação. De acordo com Denis, esses são os chamados ‘negócios verdes’, ou ‘negócios sustentáveis’, que encontraram uma boa oportunidade de mercado. “Há uma classe média alta que aceita pagar um valor maior por um alimento mais saudável, e essa produção consegue espaço na lógica do agronegócio”, explica Paulo Alentejano, professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj).
Convencer esse ‘nicho de mercado’ de que há outros elementos importantes além da busca por uma vida saudável talvez seja uma estratégia importante para conseguir implementar amplamente os demais princípios da agroecologia. De acordo com o professor, é preciso, para isso, discutir amplamente as relações de produção e de trabalho envolvidas no processo.
Na AAT, os produtores são certificados de acordo com a legislação referente à agricultura orgânica no Brasil. No entanto, Roberto Selig ressalta que a harmonia do ambiente só é completa se houver harmonia social. “Na associação, entendemos que para haver o desenvolvimento agroecológico é necessário, entre outras coisas, haver a ocupação humana da terra. Em vez de termos produtos químicos nocivos e um excesso de máquinas no campo, é preciso ter condições para a manutenção do trabalho humano no campo. Acredito que este seja o cerne da agroecologia. A AAT valoriza o trabalho manual, o trabalho solidário, os mutirões, a parceria nos fretes para o escoamento da produção – e acredita que é necessário garantir isso”.
Experiências no Brasil
Segundo Denis, já existem há iniciativas importantes por parte do poder público que devem ser valorizadas: “Há políticas diretas de fortalecimento da agroecologia, como as que viabilizam o acesso aos mercados institucionais por parte dos agricultores familiares”, diz, referindo-se ao Programa de Aquisição de Alimentos e ao Programa Nacional de Alimentação Escolar, que garantem a compra de parte da produção familiar pelos governos. Denis afirma que esses programas atingem a um conjunto bastante expressivo de agricultores, mas ainda precisam ser ampliados, pois hoje ainda prevalecem os incentivos ao agronegócio.
Em sua avaliação, os projetos agroecológicos que conseguem financiamento e as histórias de agricultores que têm boas experiências com investimentos próprios devem ganhar visibilidade para mostrar que são bons exemplos: “Assim, consegue-se mudar essa cultura de que a agroecologia não é viável economicamente, que os agricultores não vão conseguir recursos se não for para usar os insumos chamados ‘modernos’. É preciso fazer um trabalho amplo nesse sentido”, defende.
Caporal afirma que não há dados estatísticos oficiais sobre os processos de produção agroecológicos no país, mas ele acredita que o desenvolvimento do estudo e das práticas pode ser observado tanto nos congressos, encontros e seminários, quanto na quantidade de cursos formais na área. “Hoje, há mais de cem cursos, de nível médio e superior, espalhados pelo país, e temos 90 núcleos de agroecologia nas universidades e institutos federais. É uma ciência que vem se consolidando, ganhando espaço no campo científico, e também nas práticas e na vida dos agricultores”, afirma.
Em maio de 2014, foi realizado em Juazeiro (BA) o 3º Encontro Nacional de Agroecologia (ENA), com o tema “Cuidar da Terra, alimentar a saúde e cultivar o futuro”. A Associação Agroecológica de Teresópolis (AAT) esteve presente por meio de dois representantes: o agricultores Hugo Cerqueira e Valentine Van Roye.
A carta política do encontro, construída coletivamente pelos mais de dois mil participantes, foi entregue ao ministro Gilberto Carvalho, da Secretaria Geral da Presidência da República. O documento destaca a necessidade de se concluir a Reforma Agrária, posiciona-se contra a concentração da água, repudia as sementes transgênicas e o uso de recursos públicos para sua compra, destaca os conflitos ambientais em curso no país, reforça a demanda por uma educação do campo de qualidade, afirma que o agronegócio é o principal entrave para o desenvolvimento da agroecologia e reivindica a proibição no Brasil de agrotóxicos já banidos de outros países. A carta, na íntegra, pode ser baixada aqui.
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